A SOBERANIA ALIMENTAR

Bel Coelho mostra a importância dos ingredientes da floresta na culinária do Pará - Foto: Divulgação

Chef Bel Coelho mergulha na culinária nativa, da Amazônia ao Cerrado

ABNOR GONDIM
Especial para o AgroDF
27 novembro 2025

A agricultura e a culinária brasileira ficarão mais colonizadas e o país perderá soberania alimentar se não contribuírem para difundir o uso de ingredientes que traduzem a resistência ecológica e sociocultural das populações tradicionais de cada bioma, como a Amazônia e o Cerrado.

É a reflexão que levou a premiada chef paulistana Bel Coelho, 47 anos de idade, do melhor restaurante brasileiro de São Paulo, o Clandestina, a lançar o livro e o documentário “Floresta na Boca Amazônia – Pessoas, Paisagens e Alimentos” na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP-30), realizada em novembro em Belém.

“Cada fruto, cada raiz, cada semente traz em si uma história, uma ecologia, uma resistência”, sintetiza a autora, com 30 anos de carreira, formada no Culinary Institute of America, de Nova York (EUA), e com passagens por cozinhas renomadas, como El Celler de Can Roca (Espanha) e D.O.M. (SP), dirigido pelo aclamado chef brasileiro Alex Atala.

“O avanço do desmatamento, das  monoculturas extensivas, da mineração ilegal e da grilagem tem causado, além da perda de  florestas, a extinção silenciosa de modos de vida e tecnologias sociais de cuidado com a terra”, avalia a chef.

E reforça: “Nossa cultura alimentar resiste onde ainda há floresta, água limpa, território e autonomia. Sobrevive e floresce nas mãos dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas, agricultores familiares, das mulheres que guardam sementes, das cozinheiras que transformam saberes em receitas deliciosas.”

Cerrado no cardápio

Em seu primeiro livro, Bel faz o registro de alimentos de comunidades tradicionais do Pará. A intenção dela é se debruçar, nos próximos anos, sobre Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal.

Quando começou a pesquisar, há 20 anos, ingredientes brasileiros para usar em seus menus, a chef percebeu que, mais do que conhecer sabores, texturas e aromas, precisava entender a origem, a geografia e as relações implícitas nas cadeias produtivas.

No Clandestina, a chef incorporou pratos com pegadas regionais. Um deles mesclou o estrangeiro ao regional. É o Guioza com Pato no Tucupi, comida tipicamente paraense combinada com o pastel de massa fina de origem chinesa.

Bel também misturou nacos de angus com pedaços de cogumelo yanomami, da reserva indígena existente em Roraima e Amazonas.  E de quebra ilustrou seu cardápio, criando peixe fresco com aguachile de uvaia, maçã verde, vinagrete de manga e sementes de pequi, fruta típica do Cerrado.

O desejo de conhecer essa cultura alimentar em profundidade guiou a carreira da chef nas últimas décadas e culminou este ano com o projeto “Floresta na Boca”. Acompanhada de uma equipe multidisciplinar, da qual fazem parte a diretora-executiva Marina Aranha e o ecólogo Jerônimo Villas-Bôas, Bel deu início à empreitada pela Amazônia.

Diversidade ecológica

Tendo como ponto de partida os sistemas alimentares, Bel convidou o ecólogo Jerônimo Villas Bôas, da Reenvolver, para sugerir uma rota de viagem que passasse por territórios que expressassem a riqueza ecológica e sociocultural da Amazônia. O Pará foi o recorte escolhido diante da imensidão do bioma por sua diversidade ecológica, por abrigar experiências potentes de organização comunitária e bioeconomia e dispor de estrutura logística.

“No trajeto entre Altamira, Belém e Santarém, visitamos comunidades que trabalham com quatro ingredientes emblemáticos da região: açaí, cacau, castanha-do-brasil e mandioca. Esses ingredientes são amplamente conhecidos fora da Amazônia e, por isso mesmo, foram escolhidos para evidenciar contrastes e provocar reflexões”, explica Jerônimo.

Os principais rios percorridos durante a expedição nomeiam os três capítulos do livro: Baixo Tocantins, Xingu e Tapajós. A publicação, que traz ainda um glossário com 62 ingredientes do bioma, tem imagens das fotógrafas Carol Quintanilha e Lari Lopez; texto da jornalista Janaína Fidalgo e ilustrações da diretora-executiva, Marina Aranha. O projeto gráfico é da Claraboia; e o prefácio, da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva.

“Visitamos comunidades que mantêm em pé sistemas agrícolas complexos, como os quintais agroflorestais, os roçados itinerantes e os sistemas agroextrativistas. Modelos viáveis e necessários para um futuro sustentável”, diz Bel, referindo-se a ocupações e projetos bem sucedidos visitados durante a viagem.

Afro na COP

Um dos locais visitados foi a Comunidade Quilombola de Espírito Santo do Itá, no município de Santa Izabel do Pará, a 47 quilômetros de Belém. Nessa comunidade liderada por mulheres, a mandioca garante a sobrevivência de 50 famílias. Em seis retiros de farinha comunitários, produzem farinha, goma e tucupi.

A iniciativa de Bel Coelho é comemorada pela pedagoga Sigla Freitas, idealizadora do Museu da Mandioca, iniciativa inédita criada há dois anos no espaço da comunidade de afrodescendentes.

“As produções da chef Bel Coelho estão alinhadas com a menção inédita das populações afrodescendentes nos documentos finais da COP-30”, destaca. Sigla participou de eventos sobre o livro e o documentário que foram prestigiados pelo presidente da COP, André Corrêa do Lago.

Além dela, a comunidade de Espírito Santo de Itá foi representada pela vice-presidente da Associação loca, Cristiana Damasceno, e por Jane Costa, produtora de mandioca e notável cozinheira.

Agroextrativismo

Outro exemplo de ocupação bem-sucedida, que contrasta com as inúmeras áreas griladas e devastadas sob a alegação de que virariam pasto ou lavoura, mas se tornaram um vazio improdutivo, é o Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) da Gleba Lago Grande, entre os rios Amazonas e Arapiuns. Com cerca de 250 mil hectares, a região tem mais de 6.600 famílias, organizadas em 153 comunidades que vivem do extrativismo, da caça, da pesca e da agricultura familiar.

Bel visitou também a região da Transamazônica, onde parte considerável da população é composta por pequenos agricultores familiares que migraram com a promessa do governo militar de terem terra para produzir.

Medicilândia, a cultura do cacau explodiu e originou um movimento de melhoria do ingrediente, que privilegia a produção de cacau fino, fermentado, de qualidade superior. A região abriga a primeira fábrica de chocolate da Amazônia, a Cacauway, da Coopatrans (Cooperativa Agroindustrial da Transamazônica), e já teve amêndoas premiadas no Concurso Nacional de Cacau e no Cacao of Excellence, selo de excelência mundial.

O monocultivo do açaí

As visitas trouxeram também reflexões importantes sobre questões produtivas, como a “açaização” da Amazônia causada pelo boom do açaí. O extrativismo pouco a pouco está dando espaço ao cultivo intensivo, e os açaizais, antes mesclados em seus ecossistemas diversos, estão sendo transformados em monocultivos.

Além da ameaça ao equilíbrio da biodiversidade, há a questão da soberania alimentar das comunidades ribeirinhas, que passaram a ter de pagar altos valores para comprar, quando conseguem, o alimento que antes produziam.

Sobre essa questão, Bel ouviu um depoimento emocionante do extrativista Vanildo Ferreira Quaresma, presidente da Cooperativa de Fruticultores de Abaetetuba (Cofruta), no qual ele narra a relevância do fruto em  sua vida: “Açaí é um dos produtos que me criou. Quando era novo, se passava muita dificuldade, se não tinha comida, tendo açaí a gente fazia mingau ou suco, e ia sobrevivendo. Naquela época, não tinha disputa por esse produto no mercado. Era só para o nosso consumo”.

Vanildo é um dos personagens do livro, que compila relatos em primeira pessoa de outros seis agricultores, extrativistas e ribeirinhos amazônidas, como Raimunda Rodrigues, da Resex Rio  Novo, afluente do Iriri. Ela e a família fazem parte de uma Rede de Cantinas que dispõe de oito miniusinas construídas para agregar valor à economia da floresta.

A caminho da comunidade Rio Novo, Raimunda compartilhou a mais recente angústia dos extrativistas da região: este ano não deu castanha. Nascida e criada no território, tem 35 anos e nunca tinha visto faltar castanha: “Sabe o que é ir nos castanhais e não achar um ouriço pra tu provar?”.

Bel aprendeu também sete receitas locais compartilhadas no livro, como o manzape, um bolo tradicional preparado com massa de mandioca pubada ensinado por Francisca das Chagas, da Resex Rio Novo; e a de mapará assado, de Helena Quaresma, do Baixo Tocantins. Bel compartilha também três receitas suas com ingredientes do bioma, como o tempurá de pimenta-de-cheiro com camarão e geleia de bacuri e a brandade de pirarucu seco com gema curada.

“Este livro é um convite à escuta, ao reconhecimento e à valorização dos saberes que sustentam nossa biodiversidade e nossa soberania alimentar. Acredito que, enquanto houver floresta em pé, peixe no rio, semente no chão e panela no fogo, há caminho”, diz Bel.

O documentário

Rodado em julho por uma equipe de audiovisual totalmente feminina, o filme documental de 52 minutos é dirigido pela fotógrafa Carol Quintanilha. Com pesquisa de Patty Durães, foca na vida das mulheres de comunidades ribeirinhas de cidades paraenses como Altamira, Santarém, Belém, Abaetetuba e Medicilândia.

“Quisemos dar voz às guardiãs da floresta, que produzem alimentos de altíssimo valor nutricional e sensorial, com práticas de baixo impacto ambiental e imenso valor ecológico. E fazem isso de um jeito lindo, respeitoso, em plena interação com os ciclos naturais”, diz Bel, que voltou à região em julho e navegou por 20 dias pelos rios Xingu, Iriri, Novo, Tapajós, Arapiuns e Baixo Tocantins.

A quantidade de rios percorridos gerou uma brincadeira interna na equipe. “A gente está fazendo não um road movie, mas um boat movie“, brinca Carol Quintanilha, que tem ainda em sua equipe Paula Mercedez (assistente de direção), Marina Gurgel (assistente de câmera), Raquel  Lázaro (som direto), Débora Macdowell (coordenadora de produção) e Bianca Corona  (produtora executiva).

Bel Coelho (com o livro), ao lado do presidente da COP-30, André Lago, de representantes quilombolas e de outras comunidades tradicionais do Pará / Foto: Associação Quilombola Espírito Santo do Itá

Soberania na boca

Bel explora os sabores dos biomas brasileiros em menus que celebram ingredientes nativos e modos de vida tradicionais. É também ativista em temas de biodiversidade e soberania alimentar, com o propósito de levar a culinária brasileira a novos espaços de representação, reconhecimento e afeto.

Neste ano, o Clandestina ganhou o título de Melhor Restaurante Brasileiro de São Paulo, concedido pelo jornal Folha de S. Paulo.

Financiado pelo Instituto Arapyaú e realizado em parceria com a Reenvolver, o livro “Floresta na Boca Amazônia – Pessoas, Paisagens e Alimentos” foi lançado pela editora Fósforo durante a COP-30. Apoiado pela Open Society Foundation, o Instituto Imbuzeiro e o Google.org, o documentário foi exibido em primeira mão durante a conferência da Organização das Nações Unidas.

Além de mostrá-lo em primeira mão na COP-30, o documentário deverá ser lançado em São Paulo com a exibição em algum serviço de streaming.

SERVIÇO

Livro: “Floresta na  Boca Amazônia”
Lançamento em São Paulo: 1º de dezembro, na Megafauna do Copam
Lançamento no Rio de Janeiro: 4 de dezembro, na Livraria Travessia do Shopping Leblon.
Lançamento em Brasília: 9 de dezembro, na Platô Livraria, CLS 405 Bloco A Loja 12, na Asa Sul, em Brasília.

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